Quando o mar está bravo e a barca é pequena, é pecado fatal remar de modo diferente dos restantes remadores, pois essa demência fará com que naveguemos à roda, sobre nós próprios, correndo o risco de sermos apanhados numa onda mais forte, o que, no mínimo, nos levará para a “ilha perdida” que o Diabo anunciava na abertura do vicentino Auto da Barca do Inferno.
Neste Auto de pecados antigos já contados e cantados por Gil Vicente, o primeiro viajante da barca da “tristura”, para lembrar a linguagem vicentina que me ficou na memória, não é, como no Auto de Mestre Gil, o fidalgo que clamava não querer seguir para a infernal comarca, muito menos em tal barca ancorada nas margens do último rio que todos teremos de atravessar, mais cedo ou mais tarde.
Tal fidalgo não teve outro transporte que o outro batel a outros era destinado, como o não teve o onzeneiro, segundo viajante da Barca do Inferno, assim chamado por ser um prestamista que emprestava a juros de 11% . Mas nós, hoje, aqui e agora, ainda não estamos tão desesperados, como aqueles que mestre Gil descreveu no momento em que negociavam a passagem na última fronteira.
Neste reinventado auto de pecados antigos, ainda não estamos assim tão desesperados, mas, temos de dar provas de que somos capazes de remar em sintonia, no mesmo sentido, sem correr o risco de fazermos com que a nossa barca, em terra, rodopie sem Norte, sobre ela própria, afastando-nos da corrente boa, que é aquela que nos leva para longe da margem da morte e do cais onde está ancorada a barca da infernal comarca.
Neste parafraseado auto, a nossa salvação está na inteligência que temos de ter para sabermos, sem hesitações, encontrar um rumo que possa unir-nos a todos, ou a quase todos, sem opções extemporâneas de risco, na fatal e ilusória tentação de julgarmos que podemos, sem consequências de maior para nós, lançar borda fora todos aqueles que de alguma forma nos desagradam.
É que o mar está mesmo bravo e a nossa barca é pequena. E não faltam barqueiros de outras barcas e de outros mares desejosos que a nossa barca naufrague, ou que, tão simplesmente, nos deixemos ficar para trás, entretidos a olhar para o nosso umbigo ou, pior ainda, entretidos a comparar umbigos, como acontecerá se optarmos por impor ao país um intervalo de meio ano a pretexto de divergências de algumas décimas.
Luís Carvalho Lima
Presidente da Direcção Nacional da APEMIP
Publicado dia 21 de Julho de 2010 no Público Imobiliário