Há um inaudível reverso dos auscultadores que definitivamente entraram na moda como acessórios incontornáveis de quem passou a ouvir música em reprodutores de MP3. Esse inaudível reverso, como o reverso de uma medalha, são as inconveniências que ouvimos quando alguém de auscultadores na cabeça conversa para o lado sem ter em conta o volume adequado de uma conversa privada.

Sem querer arvorar-me em sociólogo de ocasião, tenho a percepção que tal fenómeno, inicialmente quase exclusivo de uma certa juventude, já contagiou outros sectores, mais adultos, atingindo alguma classe média onde cabem advogados, engenheiros, professores, médicos e até jogadores profissionais de futebol de evidente sucesso mediático, o que torna mais inesperado o tal inaudível reverso da devassa da própria intimidade.

Tenho, mais frequentemente do que poderia pensar, cruzado com gente que faz jogging ou passeia aos pares, de auscultadores na cabeça, e que conversa com o parceiro do lado, muitas vezes discutindo, sem se aperceber que o volume da voz está elevado ao ponto de transformar a conversa, privada, que está a ter, numa intervenção mais própria de um comício político.

O problema é que esses diálogos, quase inaudíveis para quem os faz mas insurdecedores para quem os ouve involuntariamente, revelam bem a dimensão da crise que muita gente está a viver, até pelo azedume dos diálogos, ou pela natureza dos temas que elegem para esses diálogos de surdos. Ainda há dias, num centro comercial de referência, fui testemunha de um desses diálogos entre um homem e uma mulher que presumi serem casados.

Ela queria comprar um gadget que não era barato, embora estivesse em promoção, mas ele lembrava-lhe que não estavam em condições de gastar muito dinheiro enquanto ela retorquia que ainda ganhava para comprar aquilo e que estava nas tintas para essas preocupações. Tudo em altos berros e ao alcance dos ouvidos do todos os outros clientes.

O que retenho do diálogo deste casal, claramente um casal que pertence ao exército da classe média, o exército que alimenta o movimento dos museus, o público dos teatros e das salas de música, os frequentadores dos restaurantes de boa qualidade e até os leitores de certas revistas e de certos jornais, bem como o negócio dos carros de gama média alta, ou o negócio das viagens turísticas, o que retenho desse diálogo é que a classe média está perder terreno, quando está a perder o emprego, a casa, a face e, o que é mais preocupante, a vontade de dar a volta a esta situação.

Sabendo que os caminhos do crescimento e do desenvolvimento das Economias mais importantes do presente têm em comum o reforço da classe média, a diminuição do fosso entre pobres e ricos com uma tendência para a erradicação da pobreza e não para o contrário, sabendo tudo isto, o que ainda não descubro, no inaudível reverso dos auscultadores de alguns compatriotas com quem me cruzo, mais a Norte do que a Sul,  é a dinâmica de uma recuperação consolidada como a nossa Economia pede

Luís Lima
Presidente da APEMIP e da CIMLOP
Confederação da Construção e do Imobiliário de Língua Oficial Portuguesa
luis.lima@apemip.pt

Publicado no dia 14 de julho de 2014 no Jornal i

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